quinta-feira, 18 de abril de 2024

Piripíri extraforte

Piripíri extraforte

É o título da minha primeira peça. Escrevi-a para o Festival Panos do Teatro Nacional D. Maria II e tenho acompanhado ao longe a sua estreia em várias salas do país: teatros municipais, auditórios, ginásios, centros culturais. 

Alguns encenadores escrevem-me. Contam-me as histórias dos bastidores. Que os atores abrem o coração, que choram, que se superam, que os pais vêm e celebram. 

A peça começa com um telefonema e acaba num brinde. A primeira deixa é: “Então, meu grandessíssimo otário?” E a última é: “Aos naufrágios”.

Pelo meio há um jantar de amigos. A luz vai abaixo. A campainha toca várias vezes. Alguém toma um duche. Alguém ladra. Alguém arrota. Alguém grita. Alguém beija. Alguém diz “Merda!”. Alguém pergunta: “Consegues ver as minhas maminhas?” Alguém diz: “O teatro é a vida.” 

Seguem-se alguns dos cartazes que encontrei nas redes: as estreias em Aveiro, Alverca de Ribatejo, Funchal, Angra do Heroísmo, Figueira da Foz, Póvoa de Santa Iria.







Puxa a vida! Estou que não posso. Toda eu uma campainha piripíri extraforte. Só me apetece ir para a rua ou para o palco. Gritar assim: 25 de abril sempre. Cessar-fogo já. 

O mundo está como está. Mas há muito mais gente boa do que má.

🌶️🌶️🌶️

terça-feira, 5 de março de 2024

Leva-me ao teu líder!



Acabei o serão a falar de eleições com o mais velho. 

Estávamos a ler um livro sobre um extraterrestre recém-chegado ao nosso planeta que quer falar com o dono disto tudo. 

“Leva-me ao teu líder!”, diz o ET a um menino. Segue-se então um diálogo de perguntas e respostas, em que o menino vai explicando ao alien que não há propriamente um chefe, que “o nosso líder é toda a gente junta”. 

O ET acha isto muito esquisito, claro. Como assim, toda a gente junta? 

Às páginas tantas, fica espantado com o desfile de eleitores empunhando boletins de voto.

“- Porque estão em fila?”, pergunta o extraterrestre. 

O meu filho aponta para a página ao lado, onde está uma urna aguardando os votos. Diz: “Eles vão pôr os papéis no lixo”.

Isto deu-me muita vontade de rir, de votar, de reciclar, de fazer campanha eleitoral e também de explicar ao meu filho que a democracia não é coisa para deitar no lixo. É uma coisa muito valiosa, muito frágil e absolutamente essencial.

Ele ficou a olhar para mim com aquele ar perplexo das crianças (e dos extraterrestres, imagino).

Queridos eleitores terrestres, ide votar. 

Pela nossa saúde, ide votar. Pelo nosso futuro. Pelo planeta. Pela igualdade. Pela democracia.



sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

TodosTusLibros 2023!

Volta e meia tiro fotografias às montras das livrarias. Peinture Fraîche, Flagey, Ptyx.

Passei parte da minha juventude na cave de um alfarrabista. 

Quando topo livros meus nas livrarias, ponho-os em destaque. Foi o livreiro da Candide que me falou de Annie Ernaux. Foi uma livreira que me recomendou Bastien Vivès. Foi na livraria da Flagey que descobri Julie Delporte. 

Em 2016, no dia dos atentados em Bruxelas, refugiei-me na livraria Ptyx, onde comprei uma novela gráfica chamada “Ici”. 

Há umas semanas, num dia de chuva, descobri uma livraria de esquina chamada Quartier Libre. 

Adoro esquinas. E acima de tudo adoro livrarias. São os meus lugares de culto. É ali que encontro paz e exerço a minha fé. 

E é por isso que, neste momento negro para o mundo, receber um prémio pela mão dos livreiros me dá muita vontade de rir e também de comer patatas bravas e emborcar uma garrafa de cava, porque este prémio é espanhol.

Em homenagem aos livreiros espanhóis, incluo aqui fotografias de três livrarias muy monas que visitei em Barcelona, em 2022, precisamente quando a Mary John foi premiada pelos livreiros da Catalunha: Finestres, Espai Culturista Sendak e la Central.






A todos os livreiros que votaram na Mary John, muchas gracias! A todos os livreiros que não votaram na Mary John, muchas gracias também. 

Que nunca nos faltem as livrarias nem os livreiros nem os livros. 

Se o mundo acabar antes de mim, estarei a folhear um livro na secção de ficção.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Uma rosa no PNL!


Pétalas e picos!🎉

Este nosso livro acaba de entrar no Plano Nacional de Leitura. Fica assim mais próximo das salas de aula, que é onde ele deve estar, parece-me. 

Sempre que volto a ele, também eu regresso às minhas salas de aula. Por um lado, volto ao primeiro ano da primária, quando aprendi a ler e a escrever e, por outro, volto às aulas de Linguística na Faculdade de Letras, quando desaprendi a ler e a escrever.

É talvez o meu texto mais teórico ou filosófico (embora não seja teórico nem propriamente filosófico). Fala de coisas, animais, plantas (e tudo o que existe ou já existiu ou poderá existir) e também fala das palavras que nomeiam as coisas, os animais e as plantas (e tudo o que existe ou já existiu ou poderá existir).

A certa altura fala também deste dilema das palavras, que não deixam de ser palavras porque nunca são verdadeiramente as coisas que nomeiam. Ou são?

Por exemplo, uma rosa.🌹

A palavra “rosa” é uma rosa? Podemos cheirar a palavra “rosa”? Podemos oferecê-la a alguém?

O livro é lindo, limpo e vivo graças à Madalena Matoso que, além de linda, limpa e viva, adora divagar. 

Esta nossa divagação sobre letras, imagens e gramática tem tudo a ver com os primeiros passos na língua e na existência.

E porque a minha pátria é a minha língua e a minha língua é o meu alfabeto, surpreende-me que as primeiras edições estrangeiras previstas para este livro sejam logo em grego e em coreano (!!!), idiomas que têm um alfabeto completamente diferente do nosso.

Como será a palavra “rosa” em coreano ou em grego? Alguém sabe?

Ei! Já estou a divagar outra vez. Perdoem-me.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

More amor por favor


 

Na montra da papelaria do bairro: “more amor por favor”.

Entro. Compro vários postais, compro uma última prenda e compro também uma recarga para a minha caneta. Escrevi pouco com a minha caneta este ano. Por um lado, não tinha tempo. Por outro, não tinha tinta.

De quando em quando a sensação de que isto já deu o que tinha a dar. 

Isto: a literatura, o ser humano, o planeta.

Cinco livros na mesa de cabeceira. Um deles ainda não comecei a ler, outro vai a meio, outro a dois terços, outro a três quartos, outro quase no fim; e nenhum deles me entusiasma por aí além. Ainda assim, leio. Para quê?

Vi a Annie Ernaux em março. Ela de microfone na mão, aos 82 anos, a dar-me respostas. “A literatura é ter uma frase para nós próprios, que possamos ler em silêncio.” Acrescenta: “E essa frase ajuda-nos a viver”.

Viemos ontem para Portugal. Eu, a minha caneta, o homem da minha vida, os nossos três filhos e as malas cheias de roupa e chocolates e um livro qualquer para ler nos intervalos. 

2023 quase no fim. Último capítulo.

Comecei a fazer bolos. Bolo de iogurte, bolo de chocolate, bolo mármore. O milagre da levedura, uma ideia a aumentar de volume. 

E de novo a sensação de que afinal sempre vamos dar a volta a isto. Cessar-fogo, eleições, energias renováveis.

Apercebi-me este ano de que os meus pais são fortes pra caneco. Sorte a minha, andar assim no mundo, rodeada de força. Os meus pais são a minha frase.

Os meus filhos deram um pulo. Já ninguém usa fralda nem chucha. Já ninguém faz sestas. Todos tão diferentes. Os meus queridos três porquinhos. 

Vi o Djavan em junho. O Caetano em setembro. A Madonna em outubro. A Mayra Andrade em dezembro.

Esta frase da Sheila Heti. “Only when a woman is no longer attractive to men, can she be left alone for enough moments to actually think.”

Este sambinha do Caetano: “Sem samba não dá.”

Pus finalmente o dispositivo intrauterino. Não quero mais filhos. Chiça. A ginecologista para mim. “Posso dizer-lhe uma coisa?” Pode, pode, claro. “O seu útero é muito bonito.” Eu e a médica na amena cavaqueira, duas mulheres, duas pessoas.

Uma reflexão da Djaimilia Pereira de Almeida: Pode uma escritora negra falar sobre outros assuntos que não o racismo? “Se eu falar sobre outras coisas, sobre a vista da minha janela ou uma futilidade qualquer que me apareça à frente… Posso fazer isso? Será que há espaço para isso, sendo eu uma mulher negra?”

O privilégio da escritora branca: escrever sobre futilidades, não escrever sobre raça, não escrever sobre privilégio, não pensar nisso sequer.

Ganhar consciência disso. A importância da ideia, da levedura.

Uma pessoa faz a diferença. Annie Ernaux, Caetano, Djaimilia, Mayra Andrade. Uma pessoa, uma voz, uma montra, uma frase.

Para quê? Para isto.

Boas entradas, amigos! Para o ano há eleições. 

More amor por favor.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

6 anos!


Come bastante. Esparguete à bolonhesa, bacalhau com grão, almôndegas da avó. Ri-se sozinho. Nem sempre explica por que razão se está a rir.

Faz planos para o futuro. Se hoje é segunda, amanhã é terça e depois é quarta. Quer saber em que dia vamos para Portugal. Digo-lhe, por exemplo: “Faltam 40 dias.” Ele diz: “Isso é muito tempo.” 


Conto-lhe tudo o que vai acontecer ao longo dos 40 dias. Primeiro vamos ao cabeleireiro, depois são as férias de outono, depois é o teu aniversário, depois montamos o pinheiro de Natal e depois vamos para Portugal. Ele decora: cabeleireiro, férias, aniversário, pinheiro, Portugal. 


Desenha que eu sei lá. Folhas e mais folhas. Carros, sapatos, pistas, mapas, monstros, super heróis e também este menino dentro de um coração no meio da chuva. 



Diz muitas vezes: “Vou pensar”. Ou então: “Estou a pensar”. E também: “Não faz mal.”

No outro dia, ao entrar no elevador, perguntou-me: “Eu sou fofinho?” Sim, sim, és muito fofinho, disse-lhe eu. Subimos no elevador, felizes com a sua fofura.


Fala muito alto. Peço-lhe que fale mais baixo. Ele diz: “Não consigo.” Pergunta-me se quero brincar com ele. Digo-lhe muitas vezes que não posso. Vou dar banho ao mano, digo-lhe eu, ou vou fazer a sopa, ou ainda estou a trabalhar. 


Por vezes lá me sento. “Vamos jogar ao jogo da glória!”, diz ele. Bora lá, então. Ele lança os dados e explica as regras, antecipa os movimentos. Diz: “Se calhas aqui, desces. Se calhas aqui, sobes.” Vai comentando o jogo. “Mamã, tiveste muita sorte.” Ou então: “Não tiveste sorte.” Quer ser ele a ganhar mas não gosta que eu perca. “Vamos ganhar os dois.” 


Gosta de ir à escola. Tem uma grupeta de amigos, todos rapazes. Nasceram em Bruxelas, mas são todos estrangeiros. O pai de um deles é sírio, a mãe de um deles é alemã. Falam todos francês. 


Gosta de ser o irmão mais velho. Muitas vezes é ele que põe fim às brigas dos irmãos. “Olha o meu umbigo”, diz ele. Os irmãos param de chorar, começam a rir. 


No outro dia, a caminho do cabeleireiro, disse-me que não queria o cabelo muito curto. Que gostava da franja mais comprida. Explicamos o seu pedido à cabeleireira. Ficou satisfeito com o resultado.


Há umas semanas sonhou que toda a gente andava na rua de cuecas. Cada vez que fala neste sonho, farta-se de rir. Diz coisas assim: Eu vou comer 10 vezes este arroz. Eu gosto tanto de ti para sempre. Eu quero secar o cabelo todos os dias.


Faz aviões de papel. Salta à corda. Constipa-se. Arrota. Pede desculpa. Ainda não perdeu nenhum dente. Ainda me pede colo. Adormece sozinho. Distrai-se facilmente. Diz coisas que o fazem rir: pum do rabo, sanita velha, mamã cocó. 


Adora pepino. Adora o Pikachu. Adora carros: carros de corrida, carros antigos, carros elétricos, telecomandados. Está a aprender a ler e a escrever. Tem uns olhos grandes, lindos, cintilantes. 


É dos mais novos da turma, é o mais velho dos irmãos. Faz hoje 6 anos. Já soprou uma vela ontem, já soprou essa mesma vela de manhã. Vai soprar outra vela na escola e depois em casa outra vez e depois há de soprar na sua festa, no próximo sábado. 


Isto é celebrar até cansar. 


Uma salva de palmas. Uma salva de palmas. Uma salva de palmas.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Mary John vai à escola!

Nunca é demais rever a matéria dada.

O meu terceiro livro, que fala precisamente de amores não correspondidos, nem sempre foi acarinhado e compreendido. 

É coisa que nos acontece a todos nós na vida real e também à jovem Mary John na sua história de ficção. O romance inclui asneiras, insultos, anedotas porcas e também palavras como “minete”, “passaroca” e “bardamerda”. 

Talvez por isso Mary John não tenha entrado logo-logo para o Plano Nacional de Leitura. Demorou uns anos, creio, mas depois lá deu o salto e chegou às escolas e às bibliotecas, isto é, aos seus leitores.

Ora, para meu espanto e deleite, dou agora de caras com um excerto de Mary John no manual escolar do 9.o ano de Português da Porto Editora. O excerto não contém asneiras nem anedotas porcas, claro, porque, a bem dizer, a Mary John fala de coisas bem sérias, não se enganem. Fala, por exemplo, do destino. 











    No exercício 3 relativo ao excerto selecionado, pede-se aos alunos que reflitam e escrevam sobre o sentido da vida, sobre a necessidade (ou não) de definirmos um plano para o futuro.

    Feliz e expectante em relação ao futuro, peguei na minha canetinha e fiz também o exercício 3.

    Chegar com este livro aos manuais escolares, às aulas de Português, a este exercício de reflexão é, para mim, chegar a um lugar desconhecido. É não perceber bem em que sítio estou. Por isso entro devagar e um pouco a medo. 

    No fundo, chegar aos manuais escolares é um pouco como chegar à idade adulta. Uma pessoa abre a boca, fala de boca cheia, e os outros, para nossa surpresa, não só nos ouvem como nos levam a sério. 

    Crescer é de facto uma coisa muito intimidante. Não estava preparada para isto.